Lembrar os mortos é reviver a história.
Para entender a história... ISSN 2179-4111. Ano 2, Volume jun., Série 29/06, 2011, p.01-03.
A vida é uma sucessão de separações graças às quais, não paramos de crescer.
A cada instante, morremos para nós mesmos, para os outros, para o mundo ou para o tempo.
É como se a experiência da perda estivesse geneticamente inscrita.
Perder alguém sempre significa reativar um sentimento que já foi vivido.
Perder um ente querido, no amor como na morte, significa desconstruir o velho sonho do “para sempre”.
O sofrimento, então, só nos faz pensar no “nunca mais”.
Luto e história.
Psicanalistas e filósofos concordam: para fazer o luto é preciso vive-lo, ou seja, adentrar a história.
Ora, frente à dor, a vida de hoje parece não autorizar mais manifestações externas, individuais ou coletivas.
Ninguém chora ou grita.
Os rituais laicos ou religiosos se reduziram ao mínimo.

Antigos
cemitérios, cujos jazigos funcionavam como uma espécie de consciência
genealógica, - nossos bisavós e avós aí repousam - se tornaram
necrópoles turísticas.
A nova cidade dos mortos é um jardim anônimo.
Hoje, vale o ditado: longe dos olhos, longe do coração.
Mas longe mesmo.
Os americanos já pensam até na satelitização das cinzas.
Evacuadas, esquecidas, estocadas, por que não manda-las ao céu?
A verdade é que o silêncio e o apagamento dos entes queridos não são signos de uma vitória contra a dor.
São, apenas, produtos anti-sépticos para dissimula-la.
Resultam de um esforço imposto pelos imperativos da “boa educação”.
A
banalização, via televisão, de guerras e acidentes que não nossos,
transforma em espetáculo a morte dos outros, sedando ou esvaziando o
horror das mortes em massa.
Mas toda a vida se acaba, sem ter verdadeiramente acabado.
Os mortos não deixam de existir. Talvez, por isso, uma das tarefas dos vivos é falar do morto, reconstruindo sua existência.
Concluindo.
O
luto não serve para esquecer, ao contrário, prepara para refazer o
personagem – parente, criança, amigo perdidos – implica em construir o
retrato que guardaremos na memória, evitando-lhes uma segunda morte.
Alguém já disse que os mortos precisam dos vivos.
Só nós podemos lhes fazer viver na lembrança.
Depois do luto, chega o tempo das conversas e de contar as vidas que tanto mais entendemos quanto mais falamos delas.
Só assim nossos desaparecidos encontrarão seu lugar em nossa memória, e na memória dos nossos.
Lugar, não sob a forma de incômodos cadáveres, mas como doce companhia, modelos ou cúmplices de nosso universo.
Desta perspectiva, lembrar dos nossos não é mais triste.
Texto: Profa. Dra. Mary Del Priore.
Doutora em História Social pela USP, com Pós-Doutorado na Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales (Paris/França).
Lecionou História do Brasil Colonial nos Departamentos de História da USP e da PUC/RJ.
Autora
de mais de cinqüenta livros e atualmente professora do Programa de
Mestrado em História da Universidade Salgado de Oliveira -
UNIVERSO/NITERÓI.
Membro do Conselho Editorial de "Para entender a história..." desde 14/01/2011.
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